INTEGRANTES
O Coletivo Terra em Cena é uma articulação de coletivos de teatro e audiovisual que atuam em comunidades da reforma agrária e quilombolas e em meio urbano. É composto por professores universitários da UnB e da UFPI, e da rede pública do DF, por estudantes das Licenciaturas em Educação do Campo da UnB e da UFPI/Campus de Bom Jesus e por militantes de movimentos sociais do campo e da cidade. O Terra em Cena se configura como programa de extensão da UnB, com projetos de extensão articulados na UnB e na UFPI, e como grupo de pesquisa cadastrado no diretório de grupos do Cnpq. Um dos projetos é a Escola de Teatro Político e Vídeo Popular do DF (ETPVP-DF) que integra a Rede de Escolas de Teatro e Vídeo Político e Popular Nuestra America.
sexta-feira, 11 de maio de 2012
Protocolo 1 de Rafael Villas Bôas sobre a peça Mutirão em Novo Sol
Protocolo 1 de Rafael Villas Bôas sobre a peça Mutirão em Novo Sol
Após debate sobre a peça ocorrido no dia 28 de outubro de
2009, com Rayssa e Janderson.
Comentário sobre as características épicas de Mutirão em Novo Sol, consideração
sobre duas canções da peça e sugestão de trabalho de cena com as canções:
A relação de
personagens:
Pela
quantidade de personagens já podemos supor que a peça não se restringe ao
universo de um núcleo familiar. Como boa parte dos personagens é descrita
apenas por sua função social (juiz, contador, etc...) fica evidente que, mais
importante que a individualidade dos mesmos, o que está em jogo é a relação que
exercem na trama da estrutura social. Mais que isso, como alguns personagens
estão nomeados em primeira pessoa do plural (lavradores, policiais, ...) fica
evidente que está em jogo não apenas a abordagem de um indivíduo descrito como
tipo social, mas a existência de um coletivo de pessoas cujo ponto comum é a
posição que exercem na pirâmide social. O escalonamento dado ao grupo de
personagens é de classe, partindo daí a tensão que configura o antagonismo
central da peça: entre o mundo dos trabalhadores e o mundo dos patrões. Não se
trata, portanto, de uma história restrita às fronteiras da vida privada.
Quanto
aos personagens com nome próprio – Porfírio, Roque, Baiano, Liodoro, Honório,
Aurora, Cruz e Dito Maria – cabe ressaltar que a individualização não restringe
o universo dos personagens nas fronteiras da ação intersubjetiva. Trata-se de
estabelecer uma espécie de linha de conduta da história por meio de uma
articulação entre personagens chaves com a dimensão – transfigurada
estéticamente – de confronto entre as classes. A estrutura épica comporta
procedimentos dramáticos sem contudo permitir que o drama se torne a forma
hegemônica da peça.
A informação sobre os cenários:
O
mesmo vale para os cenários, todos descrevem espaços públicos – tribunal,
armazém, campo, etc. – focos dos conflitos e das articulações dos dois
segmentos de classe em
confronto. São poucas as cenas em que os personagens
encontram-se na casa de algum deles, e quando isso ocorre, as paredes da
propriedade privada não subordinam os temas da esfera pública as suas
fronteiras. Pelo contrário, o lar é subvertido em espaço de organização dos
trabalhadores e das tramas dos poderosos.
Sobre as canções de cena:
Algumas
canções da peça capturam contradições e formalizam determinado movimento de
modo que o trabalho adquire relativa autonomia em relação ao todo, porque a
música deixa de ser apenas recurso técnico para acionar o envolvimento
emocional do espectador, para se tornar comentário crítico sobre determinada
questão.
Para
testar o poder de cada canção, e verificar seu potencial de revelação de
contradições, talvez seja pertinente desenvolver um trabalho de improvisação a
partir das músicas.
A
“Canção da justiça que tarda mas não vêm” tem na letra um movimento que implica
na tomada de consciência: “A justiça tarda, tarda mas não falha” do começo é
contraposta ao verso “Se a lei é safada, tarda mas não vem” do final.
Entretanto, o movimento dessa atitude crítica é em grande parte anulado pela
rima fácil, cujo efeito é confortante e banalizador. O desajuste não leva ao
estranhamento crítico, pelo contrário, ele dilui o movimento de superação pela
contradição que a letra sugere.
CANÇÃO DA JUSTIÇA QUE TARDA MAS NÃO VEM
A justiça tarda, tarda mas não falha
Mas, se a fome espera, espera nunca falha
A justiça tarda, tarda porque é cega
Anda devagar, senão escorrega
Quem precisar justiça
Tem muito que se aprumar
Tem que ser rico, ser dono
E ter tempo pra esbanjar
Quem precisar justiça
Não pode nem trabalhar
Não pode ficar doente
Ter filhos pra alimentar
A justiça tarda porque não tem pressa
Mas quem tiver pressa é quem se atrapalha
A justiça tarda para o João Ninguém
Se a lei é safada, tarda mas não vem
A “Canção do
Arranca Capim Colonião” é um coro,
entoado na primeira pessoa do plural, e em algumas passagens em primeira do
singular, porém, é evidente que o “eu” diz respeito a uma identidade de classe:
“Sou eu quem labuto / É meu o produto / Sou eu quem opino / É meu o destino”
diz respeito não a um indivíduo singular, mas à condição de conjunto da classe
trabalhadora.
A voz é imperativa
– não se trata de uma voz narrativa porque não se narra, entoa-se, por isso
trata-se de uma voz lírica –, e descreve, no primeiro estrofe, a ordenação da
ação de arrancar o capim Colonião. Diga-se de passagem que pelo sentido
específico da canção e do papel que ela exerce na trama narrativa da peça, o
nome do tipo de capim – Colonião – assume sentido metafórico, por meio da
alusão à herança colonial de submissão, autoritarismo e arbitrariedade, da qual
os personagens explorados lutam para se desvencilhar.
A segunda
estrofe é uma incitação à insubmissão e à organização dos lavradores. A união
entre os trabalhadores se estende para a união entre o homem e a natureza. A
terra – que não mente – é personagem, e também força produtiva, mas para isso
depende do cultivo, da força de trabalho, dos lavradores.
Está em jogo o
domínio dos meios de produção, da terra, da palavra, da canção, com o objetivo
de libertação do mecanismo de expropriação da força de trabalho. A canção
expõe-se como uma construção coletiva, entoada coletivamente, em sentido de
urgência – “Chegou a hora”. A construção de um ponto de vista dos trabalhadores
depende, portanto, da luta pelo domínio articulado de todas as esferas da
cultura. O gesto insurreto de arrancar o capim não é um ato isolado de
rebeldia, é um processo de tomada de consciência, conforme o próprio movimento
das estrofes parece indicar. Da primeira estrofe, em que a voz imperativa se
restringe a incitar a ação de arrancar o capim, até a última, o gesto se
complexifica e a luta ganha densidade, pois arrancar o capim torna-se um gesto
de humanização dos lavradores, na medida em que combate a fome, promove a união
entre eles e deles com a natureza, o poder da palavra é percebido como um
direito, bem como o direito de sentir e produzir – inclusive a canção
específica – e, lhes dá a convicção da necessidade de confrontação com seu
opressor, diante da percepção de que o resultado do trabalho é de quem labuta, e
que a união de quem trabalha pode elaborar um ponto de vista outro, diverso do
dominante, e portanto, um outro destino, que passa pela compreensão de que a
terra, como força produtiva, é de quem nela trabalha, e que por isso deve ser
apropriada como um meio necessário para a sobrevivência.
A convicção de
que “é chegada a hora de ter a palavra o homem que lavra” evidencia, no plano
estético, a perspectiva radical de aliança de classes em andamento no país:
como parte do ofício dos trabalhadores intelectuais, conscientes da necessidade
do domínio da linguagem, lhes caberia a transferência dos meios de produção que
permitem a figuração crítica da realidade, aos trabalhadores que detém os meios
de produção da terra.
O movimento da
canção se assemelha ao movimento da estrutura narrativa da peça, pois por meio
das cenas retrospectivas, decorrentes dos depoimentos no julgamento, assistimos
ao processo de organização dos lavradores, que se inicia com o impedimento de
comprarem alimentos e sementes no armazém, seguido da ordem de expulsão do
coronel, a discussão aberta sobre as alternativas de que dispunham – ação
violenta por impulso; desistência da terra, em função do medo; resistência
organizada; e ação judicial – as investidas frustradas ao poder judiciário, até
a antecipação dos lavradores no saque ao armazém, o ataque de retaliação que
resulta na morte de Honório, a festa em comemoração da ação do saque e a
crítica posterior ao exagero, diante da necessidade de armazenamento dos
provimentos para os próximos enfrentamentos, a divisão de tarefas entre os
presentes, o apoio do jornalista para a criação da União dos lavradores, o
amadurecimento adquirido por meio do processo de articulação com outros
trabalhadores rurais, com um candidato oportunista, com um padre e até mesmo
com um jagunço que agrediu anteriormente um dos lavradores, a resistência bem
sucedida ao segundo ataque inimigo, a elaboração coletiva da ata de fundação da
União, e a decisão das primeiras ações da entidade: arrancar todo o capim Colonião
plantado e o não reconhecimento do coronel como dono legítimo das terras. Essa
é a síntese do movimento do núcleo dos personagens lavradores.
CANÇÃO DO ARRANCA CAPIM COLONIÃO
Arranca, arranca, arranca...
Arranca o capim
Arranca o capim
Arranca o capim
Colonião
Basta de sim
Chegou enfim
A hora do não
Chegou a hora
De gente ser gente
Da fome acabar
Que a terra não mente
Responde à semente
Se a gente plantar
Tornando bem forte a união
Chegou a hora
Da casa do pobre
Ser pouca mas pobre
De ter a palavra
O homem que lavra
Do amor sendo nosso
Ser nossa também a canção
Chegou a hora
Da gente ser livre
Sou eu quem labuto
É meu o produto
Sou eu quem opino
É meu o destino
É nosso bem nosso esse chão
Arranca o
capim
Arranca o
capim...........
Um trabalho de
laboratório sobre as canções pode ser feito a partir da construção de imagens
que ilustrem os versos, da tentativa de dar seqüência às imagens, da percepção
e exposição dos aspectos contraditórios que os versos podem revelar, e da
descoberta do ritmo e melodia possível das canções, prevendo possibilidades de
silêncios, rupturas rítmicas, e na entonação dos atores. Pode-se também
trabalhar em pequenos grupos e pedir para que sejam montadas coreografias a
partir das canções. Posteriormente, pode-se trabalhar a relação entre a canção
em coro com a exposição de imagens por meio audiovisual, a projeção de
fotografias e de informações.
Brasília, 03 de novembro de 2009
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