INTEGRANTES

O Coletivo Terra em Cena é uma articulação de coletivos de teatro e audiovisual que atuam em comunidades da reforma agrária e quilombolas e em meio urbano. É composto por professores universitários da UnB e da UFPI, e da rede pública do DF, por estudantes das Licenciaturas em Educação do Campo da UnB e da UFPI/Campus de Bom Jesus e por militantes de movimentos sociais do campo e da cidade. O Terra em Cena se configura como programa de extensão da UnB, com projetos de extensão articulados na UnB e na UFPI, e como grupo de pesquisa cadastrado no diretório de grupos do Cnpq. Um dos projetos é a Escola de Teatro Político e Vídeo Popular do DF (ETPVP-DF) que integra a Rede de Escolas de Teatro e Vídeo Político e Popular Nuestra America.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Teatro político e racismo: cenas de desopressão no Semex/UFPI.



"A carne mais barata do mercado é a carne negra", catavam alguns.  "Segundo o Mapa da Violência de 2014, 20.852 jovens negros  foram mortos entre 1980 e 2011, três vezes mais que o número de homicídios de jovens brancos", bradavam outros.   "Entre trabalhadores/as que possuem ensino superior, as mulheres negras recebem salários 36% menor do que os das mulheres brancas e 130% do que os dos homens brancos " , entoavam outros. 
Em uníssono som e movimento, funcionários e estudantes  foram entrando em cena para tratar do racismo no Brasil. Estávamos no início de novembro, no campus da UFPI em Bom Jesus/PI, no contexto da oficina "Teatro político: cenas da desopressão", no SEMEX (Seminário de Cultura e Extensão). Durante um dia longo e de intenso trabalho nos dispusemos a articular arte e política para o desmonte ideológico da democracia racial no Brasil: este mito que permanece como nosso espinho na carne desde tempos imemoriais. 
Dispondo de algumas técnicas e ferramentas do teatro épico, os participantes da oficina lançaram-se no desafio de  historicizar e didatizar as causas e efeitos do problema. A situação escolhida para tal foi a chacina  de um grupo de jovens da zona metropolitana do Rio de Janeiro, deflagrada pela polícia em março de 2018, durante um evento de hip hop.
  A partir de notícias de jornais e análises da situação feitas pelo movimento negro, foram incorporadas à cena as versões do fato: da polícia, impune, justificando o ato como resposta à delinquência dos jovens, acusados de uso de drogas. Familiares e ativistas afirmando tratar-se de um projeto sistemático de extermínio da juventude negra, a partir de um marco jurídico antidrogas que ao invés de focalizar direitos, promove a criminalização das parcelas mais vulneráveis da juventude.  A cena ainda levanta a hipótese de que as substâncias  ilícitas tenham sido colocadas pós morte nas mãos das vítimas, para encobertar um crime político, já que tratavam-se de jovens ativistas do movimento hip-hop.
A preocupação do grupo de participantes centrou-se ainda em evidenciar o racismo como um problema histórico, que não se encerrou em 1888, mudando somente em sua roupagem: outrora o senhor (e seu capitão do mato, um negro) contra os escravos; agora o Estado e sua justiça burguesa (atuante meio da polícia, muitas vezes negra)contra os que têm o "defeito de cor". Outrora açoitar para dar o exemplo aos outros de como se pune qualquer desobediência: chibatadas autorizadas por lei até o número 50, mas que inúmeras vezes eram excedidas ao extremo de causarem a morte do escravo; agora, aos que teimam em fazer da arte e da música sua resistência, novas demonstrações de força que levam a um desfecho muito semelhante e sempre envolvendo a artimanha de tornar inimigos quem não deveria ser : trabalhadores negros. 
A cena buscou explicitar que a demonstração de poder, força e dominação racial tem por finalidade transformar em coisa  um povo  - no caso o povo negro, massacrar seu senso de ser gente,  impingir em sua alma o sentido da servidão,  impedindo-o de ver-se a si mesmo como grupo portador de direitos, de reagir com rebeldia e organizadamente a qualquer forma de exploração e desumanização.

A oficina  foi ministra da pelo Coletivo Cenas Camponesas, nascido de um projeto de extensão a UFPI e que atua em colaboração com o coletivo Terra em Cena da UNB. O objetivo da atividade foi apresentar para um público iniciante no que consiste e quais as raízes históricas do teatro político e  quais suas intencionalidades  métodos e técnicas de representação da realidade. Sob tal perspectiva, a oficina foi pensada para problematizar como se pode tecer a amarração entre forma estética e social  para construir narrativas contra hegemônicas, colocando em cena o que os meios de comunicação de massa não colocam:  os trabalhadores e o modo como analisam os problemas da sociedade capitalista, suas resistências e as poéticas e políticas a elas subjacentes, os meandros pelos quais se produzem como classe consciente de si. 
Em termos metodológicos, destacaram-se na oficina: o uso de uma instalação pedagógica para explicar as origens e elementos (narrador, prólogo, coro, etc..) do teatro Épico, do Oprimido e AgitProp, enfeixados na categórica de teatro político; os jogos e exercícios teatrais, ligados à desmecanização do corpo, geração de confiança, atenção e criatividade;  rodas de conversa para sedimentar a experiência sensível e racional e fazê-la convergir para a construção de uma cena sobre racismo. 
Durante esses momentos da oficina fomos tematizado o teatro político como uma práxis  de formação dos sentidos e da consciência, bem como de organização social do povo. Também discutimos o fazer teatral como um processo de trabalho (o trabalho da cultura) fundamental à democratização da sociedade brasileira.
Experimentamos o corpo em movimento no tempo e no espaço, articulando palavra e imagem à  ética da desopressão. Fomos tentando misturar os ingredientes usados no teatro que, assumidamente político,  tenta dar força, pelas formas de comunicação e expressão que incorpora às narrativas de questões sociais desde uma perspectiva coletiva, contraditória, histórica. 
Como parte das reflexões da oficina, também dialogamos que, assim como o racismo, outros temas de ordem emancipatória podem ser abordados teatralmente, como por exemplo, o feminicídio,  a concentração de terras e a violência no campo, a misoginia, a exploração do trabalho infantil. Em todo caso, o trabalho de pesquisa e compreensão da realidade, bem como de experimentação com a linguagem,  precisa ser feito para provocar a reflexão e o encontro desnaturalizado do público com a cena. O que parece óbvio deve ser revirado pela cena, a relação causa de efeito precisa ser perscrutado, o público deve estranhar o que vê e o elenco surpreender-se em cada atuação. Na tentativa de construir um teatro da desopressão (não burguês e não dramático), educativo para o público e para o elenco, tratamos também do teatro fórum, em que a quarta parede é rompida e os expectadores entram em cena para resolver o conflito, tornando-se o que Boal chama de expect-atores. 
Com reflexões como essa encerramos a oficina, mas não o Semex, nem o que de arte e cultura houve no evento. Para  fechar o seminário,  o coletivo Cenas Camponesas apresentou ( pela 4ª vez) a peça "Luta nossa, camponesa!", que trata da grilagem digital de terras no sul do Piauí e de uma série de conflitos no campo envolvendo a expropriação de trabalhadores camponeses.
 Na sequência, houve a premiação dos melhores trabalhos de extensão apresentados durante o evento. Duas  das três premiações foram dirigidas a artigos produzidos no âmbito do Coletivo Cenas  Camponesas. A premiação marcou o reconhecimento público da relevância epistêmica e metodológica do projeto para a formação humana.
O teatro político, na extensão,  é um pequeno ensaio da  mudança que queremos ver nas pessoas, para que elas transformem o mundo. Precisamos expandi-lo, colocá-lo como forma de mediação e ação com o povo, com os trabalhadores, com os movimentos em todos os espaços. Acontecer na universidade é importante, mas não basta: o teatro deve estar nas ruas, praças, nas roças e fábricas. Em todos os lugares onde houver gente, onde a opressão estiver... Façamos presentes nossos coros, teses, prólogos, canções e corações, reinventando na imaginação a mudança da realidade. 


Kelci Anne Pereira – Professora da LEdoC/UFPI - Campus Bom Jesus
Coordenadora do Cena Camponesas



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