Oficina de Mística como continuação da disciplina Processo Experimental em Teatro 1 da Ledoc/UnB em Cavalcante-GO
Angela Lopes Caetano
A imagem mostra a ornamentação construída coletivamente durante a oficina, como parte das místicas elaboradas e apresentadas pelos dois grupos de educadoras. Créditos: Ângela Caetano
A experiência de realizar a oficina de mística na Escola da Terra, em Cavalcante, no 2° Encontro de Formação do Programa Escola da Terra no Núcleo Quilombola, coordenado pelas professoras Eliene Novaes e Kelci Pereira, foi para mim uma continuidade concreta e viva da disciplina Processo Experimental em Teatro 1, da LEdoC/UnB, ministrada pelo professor Rafael Villas Bôas e pela professora Simone Menezes. Embora eu já tivesse participado de várias místicas na UnB e em outros espaços, a disciplina me provocou a olhar para essa prática de modo mais cuidadoso, entendendo-a como linguagem estética, política e formativa. Com as contribuições do professor Rafael, da professora Simone e dos colegas, fui aprendendo a perceber os gestos, os objetos, o silêncio, os símbolos e os sons como elementos que produzem sentido, formando tanto quem assiste quanto quem cria.
Essas reflexões dialogaram diretamente com minha leitura do
verbete “Mística”, escrito por Ademar Bogo no “Dicionário da Educação do Campo”, que apresenta a mística como
uma prática carregada de ancestralidade, memória coletiva e projeto político. É
um espaço simbólico que convoca corpo, território, emoção e consciência, uma
prática pedagógica tão séria quanto sensível.
Pouco antes de viajar para Cavalcante, participei da 7ª
Mostra Terra em Cena e na Tela, realizada entre os dias 26 e 29 de novembro de
2025. Conforme a Mostra acontecia, surgiam em mim muitas ideias e uma
expectativa ainda maior em relação ao teatro. As cenas, os debates e os
encontros me lembraram da potência dessa linguagem para provocar reflexão,
despertar sensibilidade e transformar realidades. De certa forma, a Mostra
influenciou a maneira como pensamos e vivemos a oficina.
Em Cavalcante, decidimos, de forma pedagógica, iniciar a
oficina com uma mística preparada por nós, com o tema das discussões do
encontro sobre Educação Escolar Quilombola. Para compor a cena, convidamos
algumas colegas da própria LEdoC, pessoas próximas que já tinham alguma
vivência com místicas, e explicamos detalhadamente o que aconteceria: quais
gestos fariam, qual seria o percurso simbólico da cena e o sentido de cada
ação. A mística exige organização: ela é séria, tem intencionalidade e envolve
risco se não houver clareza entre quem a constrói. Nada nela é improvisado ao
acaso.
Uma das partes de que mais gosto na mística é justamente o
mistério que a precede. Antes mesmo de começar, cria-se uma atmosfera de
expectativa, um silêncio curioso, uma sensação de que algo essencial está para
acontecer. Esse mistério não é sobre esconder, mas sobre preparar o espírito
para entrar em outra qualidade de presença, aquela que nos conecta com a
memória, com o coletivo e com a própria luta. Ademar Bogo ajuda a compreender
essa dimensão ao afirmar que o mistério da mística está em “saber a razão
porque na luta as coisas extraordinárias acontecem” e em “por que desafiamos
todas as forças e todos os limites para que uma causa coletiva seja vitoriosa”
(BOGO, s.n.t.).
Depois da apresentação, conduzimos o jogo teatral do Teatro
do Oprimido chamado Batizado Mineiro,
que ajudou a quebrar o gelo, criar vínculo e aproximar as educadoras que
participavam da oficina. Esse momento reforçou a dimensão da relação que
atravessa tanto o teatro quanto a Educação do Campo: o encontro faz parte do
conteúdo.
Na roda de conversa que se seguiu, ouvimos as experiências
das professoras e percebemos que muitas já tiveram vivências com místicas em
algum momento. Suas leituras sensíveis da mística de abertura mostraram que
carregavam muitos saberes. Isso reafirmou algo central para nós na LEdoC:
ninguém chega vazio. Cada participante traz consigo história, território e
modos próprios de compreender o mundo.
Trouxemos algumas discussões e perguntas pontuais para
ajudar a organizar a reflexão coletiva e aprofundar a compreensão sobre a
mística. Falamos sobre o que é mística, qual é o seu papel, quais linguagens
podem compor uma mística e o que costuma ser fundamental na mesma. Essas
discussões ajudaram a ressaltar a importância da ornamentação do espaço, que
não é apenas estética, mas parte da construção de um ambiente acolhedor e
coerente com a cultura das pessoas presentes. Os objetos acionam memórias,
evocam os ancestrais, anunciam ou denunciam algo que precisa ser dito, e é essa
dimensão simbólica que sustenta a força da mística.
A criação coletiva das místicas foi um dos momentos mais
marcantes. Dividimos o grupo em duas equipes, e cada uma teve meia hora para
produzir sua cena. Mesmo com pouco tempo, as ideias surgiram com força, e a
coletividade se fez presente em cada gesto e escolha. O mais bonito foi que as duas
místicas, criadas separadamente, se complementaram: pareciam partes diferentes
de uma mesma narrativa sobre memória, luta e esperança.
Ao final da oficina, realizamos uma última roda de conversa
para ouvir as impressões das educadoras após as apresentações das místicas
criadas por elas. As avaliações foram extremamente positivas e esse momento se
tornou, para mim, um dos mais especiais. Elas se disseram satisfeitas,
emocionadas e felizes com o processo, reconhecendo nele tanto um espaço de
aprendizagem quanto de fortalecimento coletivo. Pudemos também refletir sobre a
metodologia que utilizamos: iniciamos com a vivência da mística, seguimos com o
jogo teatral para aproximar o grupo, depois aprofundamos as discussões em
círculo — ninguém à frente ou atrás, todas com o mesmo lugar de fala e escuta —
e, por fim, passamos à prática criativa em grupos, onde cada educadora teve
liberdade para experimentar e propor. Essa liberdade também envolveu as
crianças que estavam presentes, já que algumas participantes eram mães e seus
filhos acabaram integrando espontaneamente o processo, dando outra dimensão à
criação. A metodologia que adotamos reafirma o quanto nosso modo de fazer se
distancia da lógica da escola tradicional, que separa quem “ensina” de quem
“aprende” e ignora o território, a cultura, a memória e as relações.
Ao
olhar para o processo, percebi que a oficina foi a continuidade natural da
disciplina Processo Experimental em Teatro 1. O que discutimos em sala ganhou
vida no território, no encontro com as educadoras da Escola da Terra.
A oficina de mística, portanto, não foi um momento isolado: foi extensão da disciplina, reverberação da Mostra e encontro com saberes do território. E reafirmou, mais uma vez, que a mística é capaz de formar, sensibilizar e transformar, tanto quem faz quanto quem acompanha.
Reflexões que a VII Mostra Terra em Cena e na Tela me proporcionou
A 7ª Mostra do Terra em Cena me trouxe vivência e experiência além do que eu imaginei, optei por cursar a disciplina optativa “Processo experimental em Teatro 1” com o professor Rafael Litvin porque ultimamente estou pegando gosto pelo teatro, após descobrir na disciplina anterior “Pedagogia do Teatro” que o Teatro é vivo em nosso dia a dia.
Eu escolhi analisar a mística porque, em poucas cenas e gestos, ela deixou muitas das tensões que percorreram a Mostra: memória pessoal, atualidade política, técnica teatral e formação coletiva. Não foi um ato meramente ritual; foi um dispositivo pedagógico que articulou público e ator, cotidiano e espetáculo, a partir de operações simples de leitura, a disposição de objetos em cena, narração e, por isso, merece ser pensada como método formativo e como uma prática pedagógica e estética. A disciplina que abriga essa prática entende a cena como laboratório para professores em formação; ver a mística em funcionamento é, portanto, observar uma pedagogia em ato.
Vou falar um pouco de tudo o que foi pedido nas orientações da disciplina começando pela mística porque em poucas cenas e gestos podemos ver que ela conseguiu juntar muita tensão que estava presente ao longo de toda a mostra do Terra em Cena. As memórias pessoais, a política, as técnicas de teatro e o trabalho coletivo. Não foi só pra gente se divertir e bater palmas, pois uma mecanismo de pedagogia vivo que colocou lado a lado o público, os atores, o cotidiano e o espetáculo, tudo de um jeito simples, com leitura, com narrativas dos objetos apresentados e isso tem que ser pensado como um método formativo de professores e professoras. A disciplina que tem esse tipo de prática entende as cenas como um trabalho para professores que pensam em transformar a realidade das comunidades e ver a mística funcionando é observar a pedagogia em cena.
Antes de mais nada, é preciso delimitar o uso do termo. Quando falo “mística” não me refiro a algo esotérico, mas a uma sequência ritualizada de procedimentos que cria um limiar: de um lado, pessoas dispersas; do outro, um coletivo atento. Essa travessia tem efeitos tangíveis: prepara o público para escutar, desloca a distância entre palco e plateia e institui um código de relação que é ao mesmo tempo estético e ético. Ao atravessar esse limiar, entram em cena formas de convivência que, em sala de aula, podem ser ativadas para produzir escuta e participação.
A mística é uma prática comum nos assentamentos do movimento dos trabalhadores sem terra (MST) e foi levada para o nosso curso da LEdoC porque faz parte da história da nossa licenciatura, que foi um curso formado a partir de muitas lutas e que o MST participou de forma ativa na construção. Mística não tem a ver com nada de esotérico ou mágico, apesar de ter alguma magia na hora de apresentar e o que isso representa para quem está envolvido, mas são procedimentos, ensaios, intenções preparadas com a intenção de se chegar a um fim político a partir da arte, por meio do trabalho coletivo. As pessoas que assistem a mística escutam, a distância entre o palco e os espectadores fica menor, e tem uma relação direta que pode ser ao mesmo tempo considerada estética e com função ética. Quando entendemos e vivemos isso começa a entrar nas cenas a convivência, os motivos da sala de aula, a participação dos grupos, etc.
O roteiro da mística organizou esse limiar por meio de três operações complementares. A primeira foi a leitura de notícias e trechos que colocavam a atualidade no centro do gesto trazendo o macro para o espaço imediato. A segunda foi a circulação de objetos pessoais como pilão, caneta, cabaça, garrafa, o boi bumbá ,livro, mochila e pá que acionaram memórias e saberes situados. A terceira operação foi a pergunta final “e você o que você trouxe para 7° mostra”, aberta, que convocava a resposta do público e fechava o circuito tornando a experiência coletiva. Conjugadas, essas operações criaram uma ponte entre o que é público e o que é íntimo, ensinando, de modo prático, a relação entre contexto social e experiência individual.
As apresentações da mística estavam bem organizadas e cada uma completando o sentido da outra. A primeira foi uma leitura de notícias e trechos que traziam aquilo da atualidade para os gestos, trazendo o mundo todo para um espaço pequeno. A segunda foi os objetos circulando e ganhando voz.
Análises teóricas possíveis ajudam a dar contorno a essa leitura. Penso a mística na intersecção de quatro matrizes: o teatro dialético, que busca evidenciar contradições e provocar reflexão; o Teatro do Oprimido, que transforma espectador em agente; e práticas de educação popular, que colocam saberes cotidianos como fonte legítima de aprendizagem, o teatro agitprop, que busca mobilizar o público e por último o teatro cultura popular, que usa a linguagem acessível e busca estimular as reflexões e fortalecer a identidade cultural (que foi o que fizemos quando utilizamos o pilão, cabaça, pá e outros elementos que representam a cultura popular). A mística não replicou fielmente nenhuma dessas formas, mas operou em diálogo com elas: evidenciou tensões, convidou à intervenção e valorizou os saberes locais. Para a formação docente, isso implica uma demanda clara: não basta ensinar técnicas, é preciso treinar procedimentos que tornem sensível a relação entre o vivido e o pensado.
Momento de apresentação da mística (arquivo pessoal)
Momento de apresentação da mística (arquivo pessoal)
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