Toró: Memória, Terra e Resistência na Cena Popular do Grupo Fuzuê
Amanda Araújo da Mata
A apresentação da Peça Toró, do grupo Fuzuê, foi uma experiência marcada pela força da ancestralidade, da memória e da resistência. Conduzida por duas mulheres, a peça começa com uma afirmação simbólica profunda: não haveria homens no palco, mas suas presenças surgiriam através das histórias, das marcas de violência, das lutas e dos impactos que deixaram na vida das mulheres, das famílias e das comunidades. Essa escolha dramatúrgica já anuncia uma atuação voltada à centralidade da mulher como corpo narrador aquela que guarda, lembra, denuncia e reconstrói o que muitas vezes é silenciado pela sociedade.
Ao longo da apresentação, as atrizes trazem relatos que atravessam diferentes tempos: o período da escravização, o pós-abolição, a modernidade desigual e o presente marcado por conflitos sociais. A peça costura essas temporalidades para mostrar que a injustiça no Brasil não é acidental, mas sim estrutural. E é nesse fio que um dos temas mais fortes aparece: a luta pela terra. Essa luta é apresentada como símbolo de sobrevivência, continuidade e direito humano básico, algo que historicamente sempre foi negado aos povos negros, indígenas e camponeses. As atrizes falam com intensidade sobre a terra como lugar de vida, sustento, identidade e pertencimento. Recordam que, desde os tempos coloniais, possuir terra no Brasil é possuir futuro. Apesar disso, a história do país foi construída sobre a concentração fundiária e o impedimento de acesso à terra para a maior parte da população. Esse desequilíbrio histórico, mostrado na peça, não é apenas uma memória distante: ele continua vivo nos dias atuais, refletindo-se nas desigualdades sociais e no constante impedimento para que famílias camponesas conquistem seu espaço de trabalho e moradia.
É nesse ponto que a Peça Toró dialoga profundamente com a realidade do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O espetáculo aborda a forma como inúmeras famílias lutam para conquistar um pedaço de terra onde possam viver e produzir. O MST surge como símbolo da resistência contemporânea, enfrentando inúmeras formas de criminalização, preconceito e violência institucional. Assim como narrado em cena, a luta pela terra não é apenas por território físico, mas pela possibilidade de existir de forma digna. Cada família que tenta acessar a terra carrega uma história de enfrentamento às estruturas que há séculos buscam impedir a autonomia do povo.
A peça articula essas histórias de expulsão, violência e resistência com a realidade atual, revelando como a terra sempre foi tratada como mercadoria e instrumento de poder. Ao mesmo tempo, mostra que quem produz a terra, quem cuida dela, quem a transforma em alimento, permanece sendo a parcela mais oprimida da sociedade. Essa contradição histórica é exposta no palco com sensibilidade e força, lembrando o público de que o direito à terra é também o direito à vida.
Outro ponto central é a forma como a peça evidencia que essas lutas recaem majoritariamente sobre as mulheres. São elas que carregam o peso da resistência diária: mães, avós, filhas e trabalhadoras rurais que vivem na linha de frente das opressões. Na peça, elas aparecem como protagonistas da memória coletiva, responsáveis por preservar tradições, histórias e identidades mesmo em meio a tempos de intensa dificuldade. Assim como no mundo real, são elas que seguram a comunidade quando o peso das injustiças tenta destruí-la. Transformam dor em movimento, silêncio em voz e perda em força.
Além disso, a Peça Toró provoca uma reflexão sobre como a arte é uma das poucas ferramentas capazes de confrontar a violência simbólica que permeia a história do Brasil. Quando as atrizes narram as dores, as perdas e os enfrentamentos das comunidades, elas não apenas relembram o passado elas expõem feridas ainda abertas. A encenação mostra que a memória é um ato político, um modo de resistir às tentativas de apagar as histórias do povo negro e camponês. Ao transformar essas experiências em arte, o grupo Fuzuê afirma que a cultura é também um território de luta.
Outro aspecto marcante é a forma como o corpo das atrizes é usado como instrumento de memória, denúncia e cura. Cada movimento, cada gesto, cada pausa carrega significados que ultrapassam a palavra dita. O corpo aparece como espaço de ancestralidade e, ao mesmo tempo, como campo de disputa. Na luta pela terra, na resistência das mulheres e nas contradições reveladas pela peça, o corpo é o primeiro território a ser violado e o último a desistir. A corporeidade em Toró dialoga com os movimentos sociais do campo, que também colocam seus corpos na linha de frente como ato de sobrevivência. A peça também desperta uma reflexão mais ampla sobre o que significa ser comunidade. O grupo Fuzuê evidencia que não há luta pela terra sem coletividade, sem partilha, sem união. Em diversos momentos, as narrativas mostram que o individualismo é uma construção imposta, enquanto a vida comunitária é o que realmente sustenta o povo. Essa compreensão se conecta diretamente às práticas do MST, em que a coletividade é central: cozinhas comunitárias, mutirões, assembleias, creches e escolas construídas pelo próprio povo. Toró não apenas retrata essa lógica, mas a reafirma como caminho possível para um futuro mais justo.
Outro ponto que se destaca é a crítica à forma como o poder econômico controla não só a terra, mas também a memória e a narrativa oficial do país. Ao falar das desigualdades históricas, a peça questiona quem são os donos da terra, mas também quem são os donos da história. O espetáculo propõe recuperar narrativas apagadas, dar nome e voz a pessoas que foram silenciadas pelo sistema colonial e capitalista. Ao recontar essas histórias, a peça cria fissuras na narrativa dominante e abre espaço para que o público enxergue o Brasil a partir de outras lentes as lentes do povo. Por fim, Toró também nos convida a pensar sobre a permanência aquilo que resiste mesmo quando tudo desaba. A chuva forte, o toró, pode ser metáfora da destruição, mas também da fertilidade. Depois da tempestade, a terra respira, floresce, renasce. Assim é o povo retratado no palco: mesmo diante da violência, da exclusão e da negação de direitos, continua plantando, cuidando, construindo e sonhando. A peça mostra que resistir não é apenas sobreviver; é continuar imaginando o que ainda não existe. E é justamente nessa imaginação que nasce a possibilidade de transformar o mundo.
Assim, a peça não se limita a mostrar injustiças; ela denuncia e convoca. Toró funciona como um espelho da realidade, trazendo à cena aquilo que muitas vezes é silenciado na sociedade. Ao relacionar a luta pela terra com a trajetória histórica do povo brasileiro, o grupo Fuzuê nos lembra que a arte é essencial para compreender e transformar a vida. Ela nos força a revisitar nossas raízes, reconhecer as violências que ainda moldam o país e entender que a luta pela terra é também luta por dignidade, por comida, por educação, por futuro e por humanidade.
Ao final, o público não recebe apenas um espetáculo, mas um chamado para refletir sobre as desigualdades que sustentam o Brasil e sobre a importância da resistência coletiva. Peça Toró, ao trazer à tona essas questões, reafirma que a memória não é estática ela pulsa, se movimenta e cria novas possibilidades de existir. A luta pela terra, o papel das mulheres e a força das comunidades camponesas se unem no palco para lembrar que, enquanto houver injustiça, haverá também resistência .
Processo de construção e execução da mística da VII Mostra Terra em Cena e na Tela
Dolores da Conceição Santos
A 7ª Mostra Terra em Cena
e na Tela, sob a coordenação do Professor Rafael Villas Bôas (UnB), representa
um marco de excelência e experimentação no teatro. Este projeto, desenvolvido
no âmbito da disciplina Processo Experimental no Teatro 1, busca ir além da performance
convencional. Ele se estabelece como um espaço de criação coletiva e cultural,
onde a mística atua como ferramenta potente.
A 7ª Mostra é fundamental
para promover um diálogo direto com coletivos teatrais de todo o Brasil,
especialmente os influentes grupos de São Paulo e muitos outros estados.
Demonstra-se, assim, uma rica tapeçaria de formas de expressar a arte e a
política. Ao adotar essas inspirações, a Mostra materializa o conceito de
ocupação dos espaços da Faculdade UnB Planaltina, transformando o campus em um
palco vivo e pulsante de experimentação, aprendizado e resistência cultural,
refletindo as diversas vozes e métodos do teatro brasileiro contemporâneo.
O processo de construção
e execução da mística da VII Mostra Terra em Cena e na Tela considerou a
mística como um processo coletivo de recuperar a memória da infância,
adolescência, na sua cidade em que nascemos, então nessa construção nos
primeiros ensaios tinhamos que pensar em um objeto, que lembrasse nossas memórias.
De primeira pensei no objeto chapéu, ainda comentei sobre ele, mas relembrando
as minhas memórias na vida do campo onde nasci no estado do Maranhão, já
começando trazendo a lembrança do passado. Continuando e ensaiando com os
colegas, cada um já escolheu seu objeto, começando com pilão, caneta, mochila,
uma escultura de oficina de barro, violão pra alegrar mais a mística, chapéu,
como falei, comecei com esse pensamento, mas não ainda estava segura com esse
objeto chamado chapéu.
Aí o professor Rafael
apareceu com um boi pequeno, quando o vi veio uma lembrança viva na minha
infância e adolescência e vida adulta na minha família. Meus pais, uma tradição
folclórica do mês de junho, eles faziam uma apresentação do Bumba Meu Boi com
grupo de pessoas, tinham as índias que eram vestidas de roupas de penas
fabricadas pelas próprias, as músicas eram muito divertidos e mais um homem que
ficava dentro do boi que dançava e cada hora trocava de couro que era bordado
de miçanga, então foi de grande importância relembrar tudo aquilo, parecia que
estava vivendo naquela época.
Na 7ª Mostra Terra em
Cena e na Tela teve uma apresentação oral do jornal lido pelos colegas e pelo
professor, as notícias do Jornal Correio Braziliense, jornal da cidade, com
reportagem sobre o ex-presidente da República, sobre o golpe de estado e outras
notícias. Tudo isso que aconteceu na mística foi muito produtivo e cultural,
representação viva e de grande aprendizado. Uma prática inédita, uma
participação inédita e um público assistindo a nossa apresentação sobre as
nossas memórias, com cada uma de nós trazendo uma lembrança diferente. E tudo
que aconteceu sobre a 7ª Mostra ficou marcada em uma lembrança que jamais
esquecerei.
Aquele público aplaudindo
a nossa apresentação, a todos nós, também com aquele olhar de felicidade e de
grande entusiasmo... E eu fiquei muito mais feliz por aquele boi pequeno que
apareceu na minha frente. Fiquei tão feliz que parecia uma criança ganhando um
presente de Natal, que até agora não consigo esquecer aquele momento de ver
aquele objeto chamado boi, que foi a vida e tradição muitos e muitos anos na
minha família, até meus pais falecerem. Foi uma realização maravilhosa que
nunca esquecerei. O professor Rafael está de parabéns por essa iniciativa, por
essa mística que nos proporcionou à nossa turma para esta disciplina Processo
Experimental no Teatro 1. Foi um processo excelente, criativo e cultural, um
presente que nos presenteou que vai ficar na memória, que voltou aos nossos
tempos que vivíamos com a nossa família humilde de 17 irmãos.
Chegamos ao fim de cinco
dias intensos de arte, experimentação e profundo aprendizado na 7ª Mostra Terra
em Cena e na Tela. Este período foi marcado por uma rica diversidade de cenas,
oficinas e apresentações de vários coletivos, que transformaram os espaços do
campus da UnB de Planaltina.
A 7ª Mostra cumpriu seu
papel vital ao dar visibilidade e palco às representações dos movimentos
sociais, focando em narrativas que tocam diretamente nas realidades que
compartilhamos. Foi especialmente significativo o destaque dado às vivências
urbanas periféricas, que frequentemente permanecem isoladas ou invisibilizadas
na sociedade. O teatro se provou, mais uma vez, uma ferramenta essencial para
romper esse isolamento e construir pontes de entendimento.
Expressamos nossa sincera
gratidão a todos os professores pela coordenação impecável e pelo apoio
contínuo. Agradecemos também aos estudantes, cuja dedicação, coragem e talento
foram a força motriz que deu vida a cada performance e debate. Esta Mostra não
é apenas um evento, mas um ato coletivo de resistência e celebração da nossa
diversidade.
Imagem de Dolores da Conceição com o
boi, em ensaio no teatro Augusto Boal.
Crédito da foto: Rafael Villas Bôas
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