Composição do Terra em Cena

O Coletivo Terra em Cena é uma articulação de coletivos de teatro, audiovisual e artes visuais que atuam em comunidades da reforma agrária, quilombolas e em meio urbano. É composto por professores universitários da UnB, da UFSJ, da UFSC e da UFVMJ, da rede pública do DF, por estudantes da Licenciatura em Educação do Campo da UnB e por militantes de movimentos sociais do campo e da cidade. O Terra em Cena se configura como Programa de Extensão da UnB, com Projetos de Extensão articulados na Faculdade UnB de Planaltina (FUP) e como grupo de pesquisa cadastrado no diretório de grupos do Cnpq. Um dos projetos é a Escola de Teatro Político e Vídeo Popular do DF (ETPVP-DF) que integra a Rede de Escolas de Teatro e Vídeo Político e Popular Nuestra America.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Reflexões de doutorandos do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas sobre a VII Mostra Terra em Cena e na Tela

 Cena Padrão na VII Mostra Terra em Cena e na Tela - a pedagogia da opressão e sua insurgência por meio do Teatro Fórum

O professor e doutorando Pedro Ribeiro, que atuou como curinga na sessão de Teatro Fórum que marcou a estreia do grupo, registra o momento no texto abaixo. 

 

A cena “Padrão”, apresentada pelo grupo Encena Kalunga, emergiu como uma potente denúncia das engrenagens de opressão reproduzidas dentro de uma instituição educacional cívico-militar, marcada por normas rígidas e pela vigilância constante dos corpos. O enredo expôs a trajetória de uma jovem quilombola Kalunga em seu primeiro dia de aula, confrontada por um conjunto de regras que age como dispositivo disciplinar e evidencia uma estrutura social enraizada em uma política de segregação baseada em aspectos raciais: o uniforme obrigatório, o controle sobre a aparência, o policiamento do cabelo crespo e volumoso de uma mulher negra e a deslegitimação de seus elementos culturais (cultura kalunga). 

A cena articulou, de modo crítico, o entrelaçamento entre racismo institucional, elitismo e autoritarismo, evidenciando como a autoridade escolar se curva às hierarquias sociais representadas pelos filhos de uma advogada e de um deputado estadual, cuja denúncia direcionada à diretora reforça a lógica de que o poder econômico opera como atalho para definir quem é ouvido e quem é punido. Nesse embate, a estudante Kalunga e sua colega — ambas meninas negras — tornam-se alvos da tentativa de silenciamento, culminando em uma imagem congelada de opressão que não simboliza rendição, mas um estado limite de tensão, resistência e desejo de mudança.

A cena “Padrão”, de Teatro-Fórum, conduzida por Pedro Ribeiro e Rafael Villas Bôas nos papeis de coringas, transformou a opressão ficcional em campo de ação coletiva, abrindo espaço para que a plateia interviesse na realidade dramatizada. Dessa vez, não apenas se discutiu a violência institucional, mas experimentou-se alternativas de enfrentamento. A entrada em cena de Fernanda, doutoranda da Faculdade de Educação da UnB, desencadeou um movimento de insurgência: ela convocou aliados para denunciar e confrontar as imposições injustas da diretora e da estrutura escolar, provocando uma energia de mobilização que ultrapassou o palco e ganhou corpo no gesto do público, que se levantou e se colocou ao lado da personagem. 

O palco tornou-se, assim, território de reinvenção política, no qual opressões racializadas, classistas e autoritárias puderam ser criticamente tensionadas e reinterpretadas. A cena, produzida no âmbito da disciplina Pedagogia do Teatro do curso de Licenciatura em Educação do Campo (UnB - Planaltina/DF), ministrada pelo professor Rafael Villas Bôas, com colaboração do doutorando Pedro Ribeiro (lecionando conjuntamente a disciplina ao cursar Prática Docente com seu orientador), funcionou como ato de afirmação da cultura Kalunga e como exercício pedagógico de emancipação, reafirmando o Teatro do Oprimido como prática estética capaz de transformar espectadores em sujeitos coletivos de ação.

Apresentação da peça “Padrão” do grupo Encena Kalunga no Teatro Augusto Boal seguida de fórum e debate. Foto: acervo do grupo



Anotações sobre “Plataforma”, da companhia "Estudo de Cena", e o trabalho feminino sob a máquina capitalista 

Por Dhenise Galvão, doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília 

 

A peça Plataforma cria um espaço onde diferentes tempos do trabalho feminino se tocam sem pedir licença. As figuras das operárias da revolução industrial aparecem quase costuradas às trabalhadoras da era digital. A cena funciona como uma dobra. Passado e presente se enfrentam e se reconhecem. Nada vem organizado em linha reta. A narrativa escapa, volta, comenta a si mesma e revela suas engrenagens. A sensação de distanciamento, o modo como as atrizes nomeiam suas ações e a circulação entre ficção e realidade aproximam a peça da proposta brechtiana, algo que para mim ficou evidente ao longo de toda a encenação.

O espetáculo me trouxe outras associações pessoais. Em vários momentos pensei no filme “Dançando no Escuro”, de Lars von Trier. Talvez pelos gestos exaustos das personagens, talvez pelo peso industrial que repousa sobre tudo. Talvez simplesmente porque se trata de mulheres atravessadas por sistemas que exploram até o limite. O figurino sustenta essa aspereza. Ele fala de desgaste. De repetição. De sobrevivência.

Há um ponto decisivo na forma como a peça articula cena e tecnologia. O celular aparece como dispositivo dramatúrgico que molda ações, produz vigilância e condiciona a presença das personagens. Ele opera como mais uma máquina que observa enquanto observamos, instaurando um circuito contínuo de exposição, coleta de imagens e dependência que espelha a lógica tecnológica da vida contemporânea. Nada ali sugere neutralidade, o aparelho estrutura tanto a relação entre as intérpretes quanto o modo como o público é convidado a perceber aquela vigilância. A ideia que atravessa a obra está no “medo de não ser visível, o risco de desaparecer”, a vigilância que se mistura à economia e o patrão transformado em câmera e algoritmo.

Outra coisa marcou a experiência. A plateia quase inteira permaneceu atenta. Quase ninguém mexia no celular, o que é raro hoje. O assunto exposto no palco parecia impedir aquela fuga rápida para a tela. Eu mesma só cheguei a ver uma pessoa olhando o aparelho. Foi curioso perceber esse silêncio digital num espetáculo que fala justamente da captura da nossa atenção.

A peça não se propõe a uma narrativa pessoal, no entanto pequenas fissuras deixam ver vidas que tentam existir enquanto trabalham. Uma das personagens fala da filha. A chuva cai dentro e fora da cena. Há uma vibração emocional que atravessa tudo isso e que se mistura às questões mais amplas do trabalho. Mesmo sem contar uma história íntima, o espetáculo convoca o público a lembrar que todo corpo em cena é um corpo que trabalha, cansa, insiste. Saí com essa sensação. A de que todas nós somos arrastadas pela engrenagem. Mesmo quando não estamos numa fábrica. Mesmo quando pensamos que escapamos.

“Plataforma” não oferece conforto. Ela cutuca, mostra. Insiste para que a gente veja o que está diante dos olhos e o que escapa. É um trabalho que revela a paisagem invisível do cotidiano laboral das mulheres. Expõe os atravessamentos históricos. Faz a plateia pensar e sentir. E isso ficou evidente no interesse total do público durante a apresentação. A recepção foi de escuta, de concentração e de impacto. Um silêncio atento que dizia muito sobre a força do que estava sendo compartilhado ali.


Peça “Plataforma” da Cia Estudo de Cena. Fotos de Luara Dal Chiavon


“A Aurora”, da Cia. Burlesca 

 Por Dhenise Galvão

 

No Distrito Federal, a formação de plateia teatral ainda enfrenta resistências culturais, com parte do público associando o teatro a algo distante ou excessivamente comercial. Nesse cenário, espetáculos como “A Aurora”, da Cia. Burlesca, cumprem um papel essencial, ao oferecer uma experiência cênica acessível, politicamente engajada e esteticamente sólida, capaz de aproximar novos espectadores, inclusive crianças e jovens, de temas urgentes da realidade brasileira.

Apresentado na 7ª Mostra Terra em Cena e na Tela, evento dedicado a obras que abordam o campo, os trabalhadores rurais, quilombolas, assentamentos e lutas agrárias, o monólogo “A Aurora” tem interpretação de Julie Wetzel e direção de Patrícia Barros e Lyvian Sena. A peça parte do livro “A Revolução de Anita”, de Shirley Langer, e constrói, a partir do relato de uma professora do campo, uma reflexão profunda sobre o direito à educação.

Julie Wetzel alterna cenas com fluidez notável, transitando entre momentos de leveza e tensão dramática. O espetáculo inicia com uma interação direta com a plateia, questionando as profissões dos sonhos de cada um, respostas que revelam aspirações comuns, como professor, bombeiro ou cantor, para, em seguida, confrontar essas projeções com a realidade de grande parte da população brasileira, para quem o acesso à educação é limitado e o futuro parece predeterminado.

No centro da narrativa está o poder transformador da leitura, do letramento e da educação popular como instrumentos de emancipação individual e coletiva. A atriz sustenta o monólogo com presença cênica intensa, valendo-se de um cenário minimalista e funcional, uma mesa que se transforma em vários espaços domésticos e simbólicos, abrindo compartimentos para livros e objetos que ampliam o universo da personagem.

Entre os momentos de maior impacto está a sequência ritmada com batidas no peito, acompanhando a canção “Front de guerra”, de Alessandra Leão, que reforça a ideia de uma luta cotidiana e coletiva pela dignidade e pelo conhecimento. Embora apresente um trecho mais expositivo ao detalhar a inspiração da história, a peça mantém o envolvimento do público até o final, quando se abre para um debate rico, no qual a atriz compartilhou sua recente experiência de apresentar o trabalho em Cuba.

Um diferencial importante é o material distribuído ao final, o folder com a “Biblioteca da Aurora”, uma compilação cuidadosa de referências bibliográficas, reportagens, documentários, artigos acadêmicos e links organizados por temas. O documento abrange educação popular, o método cubano “Yo, sí puedo”, o legado de Paulo Freire na alfabetização de adultos, experiências do MST, casos de censura literária no Brasil e reflexões sobre o direito à literatura, oferecendo ao espectador ferramentas concretas para aprofundar os debates propostos em cena.

“A Aurora” exemplifica o potencial do teatro local como espaço de resistência cultural e formação crítica. Ao aliar rigor artístico, pesquisa histórica e compromisso social, o espetáculo não apenas entretém, mas provoca reflexões necessárias sobre desigualdade, acesso ao conhecimento e transformação social. Uma obra potente, que reforça a importância de investir em produções que valorizem a inteligência e a sensibilidade do público.

Parabéns à Cia. Burlesca, à equipe e especialmente a Julie Wetzel por um trabalho consistente, acolhedor e profundamente necessário.

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