"A carne mais barata do mercado é a carne
negra", catavam alguns. "Segundo o Mapa da Violência de
2014, 20.852 jovens negros foram mortos entre 1980 e
2011, três vezes mais que o número de homicídios de jovens brancos",
bradavam outros. "Entre
trabalhadores/as que possuem ensino superior, as mulheres negras recebem
salários 36% menor do que os das mulheres brancas e 130% do que os dos homens
brancos " , entoavam outros.
Em uníssono som e movimento,
funcionários e estudantes foram entrando em cena para tratar do racismo
no Brasil. Estávamos no início de novembro, no campus da UFPI em Bom
Jesus/PI, no contexto da oficina "Teatro político: cenas da
desopressão", no SEMEX (Seminário de Cultura e Extensão). Durante um dia
longo e de intenso trabalho nos dispusemos a articular arte e política para o
desmonte ideológico da democracia racial no Brasil: este mito que permanece
como nosso espinho na carne desde tempos imemoriais.
Dispondo de algumas técnicas e
ferramentas do teatro épico, os participantes da oficina lançaram-se no desafio
de historicizar e didatizar as causas e efeitos do problema. A situação
escolhida para tal foi a chacina de um grupo de jovens da zona
metropolitana do Rio de Janeiro, deflagrada pela polícia em março de 2018,
durante um evento de hip hop.
A partir de notícias de
jornais e análises da situação feitas pelo movimento negro, foram incorporadas
à cena as versões do fato: da polícia, impune, justificando o ato como resposta
à delinquência dos jovens, acusados de uso de drogas. Familiares e ativistas
afirmando tratar-se de um projeto sistemático de extermínio da juventude negra,
a partir de um marco jurídico antidrogas que ao invés de focalizar direitos,
promove a criminalização das parcelas mais vulneráveis da juventude. A
cena ainda levanta a hipótese de que as substâncias ilícitas tenham sido
colocadas pós morte nas mãos das vítimas, para encobertar um crime político, já
que tratavam-se de jovens ativistas do movimento hip-hop.
A preocupação do grupo de
participantes centrou-se ainda em evidenciar o racismo como um problema
histórico, que não se encerrou em 1888, mudando somente em sua roupagem:
outrora o senhor (e seu capitão do mato, um negro) contra os escravos; agora o
Estado e sua justiça burguesa (atuante meio da polícia, muitas vezes
negra)contra os que têm o "defeito de cor". Outrora açoitar para dar
o exemplo aos outros de como se pune qualquer desobediência: chibatadas
autorizadas por lei até o número 50, mas que inúmeras vezes eram excedidas ao
extremo de causarem a morte do escravo; agora, aos que teimam em fazer da arte
e da música sua resistência, novas demonstrações de força que levam a um
desfecho muito semelhante e sempre envolvendo a artimanha de tornar inimigos
quem não deveria ser : trabalhadores negros.
A cena buscou explicitar que a
demonstração de poder, força e dominação racial tem por finalidade transformar
em coisa um povo - no caso o povo negro, massacrar seu senso
de ser gente, impingir em sua alma o sentido da servidão,
impedindo-o de ver-se a si mesmo como grupo portador de direitos, de
reagir com rebeldia e organizadamente a qualquer forma de exploração e
desumanização.
A oficina foi ministra da
pelo Coletivo Cenas Camponesas, nascido de um projeto de extensão a UFPI e que
atua em colaboração com o coletivo Terra em Cena da UNB. O objetivo da
atividade foi apresentar para um público iniciante no que consiste e quais as
raízes históricas do teatro político e quais suas intencionalidades
métodos e técnicas de representação da realidade. Sob tal perspectiva, a
oficina foi pensada para problematizar como se pode tecer a amarração entre
forma estética e social para construir narrativas contra hegemônicas,
colocando em cena o que os meios de comunicação de massa não colocam: os
trabalhadores e o modo como analisam os problemas da sociedade capitalista,
suas resistências e as poéticas e políticas a elas subjacentes, os meandros
pelos quais se produzem como classe consciente de si.
Em termos metodológicos,
destacaram-se na oficina: o uso de uma instalação pedagógica para explicar as
origens e elementos (narrador, prólogo, coro, etc..) do teatro Épico, do
Oprimido e AgitProp, enfeixados na categórica de teatro político; os jogos e
exercícios teatrais, ligados à desmecanização do corpo, geração de confiança,
atenção e criatividade; rodas de conversa para sedimentar a experiência
sensível e racional e fazê-la convergir para a construção de uma cena sobre
racismo.
Durante esses momentos da oficina
fomos tematizado o teatro político como uma práxis de formação dos
sentidos e da consciência, bem como de organização social do povo. Também
discutimos o fazer teatral como um processo de trabalho (o trabalho da cultura)
fundamental à democratização da sociedade brasileira.
Experimentamos o corpo em movimento
no tempo e no espaço, articulando palavra e imagem à ética da
desopressão. Fomos tentando misturar os ingredientes usados no teatro que,
assumidamente político, tenta dar força, pelas formas de comunicação e
expressão que incorpora às narrativas de questões sociais desde uma perspectiva
coletiva, contraditória, histórica.
Como parte das reflexões da
oficina, também dialogamos que, assim como o racismo, outros temas de ordem
emancipatória podem ser abordados teatralmente, como por exemplo, o feminicídio,
a concentração de terras e a violência
no campo, a misoginia, a exploração do trabalho infantil. Em todo caso, o
trabalho de pesquisa e compreensão da realidade, bem como de experimentação com
a linguagem, precisa ser feito para provocar a reflexão e o encontro desnaturalizado
do público com a cena. O que parece óbvio deve ser revirado pela cena, a
relação causa de efeito precisa ser perscrutado, o público deve estranhar o que
vê e o elenco surpreender-se em cada atuação. Na tentativa de construir um
teatro da desopressão (não burguês e não dramático), educativo para o público e
para o elenco, tratamos também do teatro fórum, em que a quarta parede é
rompida e os expectadores entram em cena para resolver o conflito, tornando-se
o que Boal chama de expect-atores.
Com reflexões como essa encerramos
a oficina, mas não o Semex, nem o que de arte e cultura houve no evento. Para
fechar o seminário, o coletivo Cenas Camponesas apresentou ( pela 4ª
vez) a peça "Luta nossa, camponesa!", que trata da grilagem digital
de terras no sul do Piauí e de uma série de conflitos no campo envolvendo a
expropriação de trabalhadores camponeses.
Na sequência, houve a
premiação dos melhores trabalhos de extensão apresentados durante o evento.
Duas das três premiações foram dirigidas a artigos produzidos no âmbito
do Coletivo Cenas Camponesas. A premiação marcou o reconhecimento público
da relevância epistêmica e metodológica do projeto para a formação humana.
O teatro político, na extensão,
é um pequeno ensaio da mudança que queremos ver nas pessoas, para
que elas transformem o mundo. Precisamos expandi-lo, colocá-lo como forma de
mediação e ação com o povo, com os trabalhadores, com os movimentos em todos os
espaços. Acontecer na universidade é importante, mas não basta: o teatro deve
estar nas ruas, praças, nas roças e fábricas. Em todos os lugares onde houver
gente, onde a opressão estiver... Façamos presentes nossos coros, teses,
prólogos, canções e corações, reinventando na imaginação a mudança da
realidade.
Kelci Anne Pereira – Professora da LEdoC/UFPI - Campus Bom Jesus
Coordenadora do Cena Camponesas
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