INTEGRANTES
O Coletivo Terra em Cena é uma articulação de coletivos de teatro e audiovisual que atuam em comunidades da reforma agrária e quilombolas e em meio urbano. É composto por professores universitários da UnB e da UFPI, e da rede pública do DF, por estudantes das Licenciaturas em Educação do Campo da UnB e da UFPI/Campus de Bom Jesus e por militantes de movimentos sociais do campo e da cidade. O Terra em Cena se configura como programa de extensão da UnB, com projetos de extensão articulados na UnB e na UFPI, e como grupo de pesquisa cadastrado no diretório de grupos do Cnpq. Um dos projetos é a Escola de Teatro Político e Vídeo Popular do DF (ETPVP-DF) que integra a Rede de Escolas de Teatro e Vídeo Político e Popular Nuestra America.
domingo, 24 de julho de 2016
Cartas do exílio e a forma de narrar de Cecília Thumin Boal
Numa tarde fria e chuvosa de 20 de junho de 2016, dentro
da pequena sala do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, onde está a
exposição Cartas do Exílio, Cecília se pôs a falar para uma plateia
interessada, que lotava a sala repleta de cartas, fotos e cartazes.
Pelas cartas de Augusto Boal podemos perceber o gesto da
disciplina intelectual de elaborar, sempre, sobre as contradições da realidade
em que vivia e com a qual se defrontava. No diálogo com companheiros, como
Chico Buarque e Guarnieri, estava sempre a compartilhar sentimentos,
impressões, e a combinar trabalhos conjuntos, publicações, peças, músicas.
Proletários artistas profissionais, empenhados na melhor divulgação dos seus
trabalhos, buscando meios de sobreviver na adversidade, agindo como
propagandistas contra o golpe no exterior.
A ligação com organizações políticas, como o Partido
Comunista Brasileiro (PCB) e a Aliança Libertadora Nacional (ALN),
era também uma característica comum. Tempos menos fragmentados: o trabalho
intelectual não estava à serviço de carreiras individuais, a realidade não era
apenas objeto de análise.
Mas, naquela tarde estava Cecília a discorrer sobre as
cartas: o homem com quem viveu e trabalhou, a ditadura, o exílio e seus
múltiplos traumas, ressaltando todavia as possibilidades que a experiência
proporcionou à família. De todas as formas como a história pode ser
contada, Cecília evita aquelas cujo encaixe de sua presença no processo ou à
destaque, ou a reifique, no lugar tradicional da mulher de um grande homem.
Diante de nós estava uma atriz e uma psicanalista, a
mulher por quem Boal se apaixonou e levou uma vida junto. Uma trabalhadora que
não se vangloria contando os espetáculos em que atuou. O desavisado não saberá
por ela, mas pelo cartaz da montagem de “Arena conta Zumbi”, que lá estava ela
no elenco, e também de muitas outras peças em diversos países.
Por intermédio de uma carta de Boal para a mãe ficamos
sabendo que, por vezes, era ela que bancava a casa – o exílio marcado
pelas dificuldades econômicas, com seu trabalho de atriz nas montagens de
sucesso que participou.
A condição de psicanalista – a audiência soube por ela
que definiu na França abandonar a carreira de atriz porque já não aguentava a
cada mudança de país ter que aprender com fluência a língua para poder atuar –
confere à narrativa de Cecília um ponto de vista terno e distanciado, tanto
sobre a relação de Boal com a mãe, quanto sobre a projeção de culpa que
carregou diante do impacto do exílio sobre os filhos dela e Boal.
Essa condição, agregada ao fato de ser argentina, também
lhe permite um comentário distanciado sobre o Brasil e seus pactos: de silêncio
sobre o passado, de conciliação cordial no presente. Países que promoveram rupturas
radicais em seus processos formativos carregam na cultura, na sociabilidade,
legados desse gesto. O impasse da conciliação permanente como gesto político
não é um dilema de nossos países vizinhos como é para nós, brasileiros.
Por isso ter Cecília entre nós elaborando sobre os
(nossos) traumas é uma oportunidade de grande aprendizado: sem vitimização, sem
heroísmo, a narrativa de Cecília vai nos mostrando uma personagem fundamental,
não apenas do passado, mas do tempo presente.
Esse tempo do agora extravasou os limites da exposição,
do período da resistência à ditadura e da expectativa com a democratização. As
pessoas perguntavam sobre o Instituto Augusto Boal, sobre a eficácia do Teatro
do Oprimido como meio de formação e resistência. Alguns, como o estudante
Andrey, do Levante Popular da Juventude, não apenas perguntava, mas dava
depoimento de suas experiências com o método.
Cecília e Julian Boal puderam então abordar as redes, os
encontros, em que estão ativamente envolvidos. Aqui termino, como testemunha da
forma produtiva que ambos têm se colocado no cenário do teatro político
contemporâneo: contra a cômoda posição de herdeiros do legado do mestre, os
dois, mãe e filho, trabalhadores do teatro – Julian também como
pesquisador, fazendo doutorado sobre o tema – têm se colocado como
articuladores, mediadores, potencializadores de
encontros intercontinentais entre grupos e movimentos sociais.
Por exemplo, ocorreu o Encontro Internacional de Teatro do Oprimido
na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), de 27 de junho a 01 de julho de 2016, reunindo cem
pessoas de oito países e mais de vinte grupos praticantes de Teatro do
Oprimido. E o II Seminário Internacional Teatro e Sociedade (SITS), da Rede
Teatro e Sociedade, ocorrido na Universidade de Brasília, de 14 a 17 de
dezembro de 2015, em que Cecília ministrou uma das cinco oficinas,
compartilhando como era o método de interpretação desenvolvido pelo Teatro de
Arena, em que ela atuava como atriz e Augusto Boal como diretor.
O empenho de Cecília e de Julian não é o de, tão somente,
publicizar uma forma bem sucedida de teatro, mas de questionar a todo momento o
limite e a potência das formas e métodos, sempre em contraste com as
possibilidades do tempo histórico em que vivemos, e com as condições objetivas
de sobrevivência do Teatro Político na atualidade. Sem a reivindicação de um
protagonismo espetacular e hierárquico, vão a maneira deles ligando o passado
ao presente, promovendo encontros, dando palestras, ministrando oficinas,
organizando exposições, construindo elos essenciais.
Rafael Villas Bôas
Professor da
Universidade de Brasília
Integrante do Coletivo
Terra em Cena
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