O terceiro ano do governo de extrema direita no Brasil foi marcado pelo
agravamento de tragédias: mais de 600.000 vítimas brasileiras de covid-19,
crises ambientais, agravamento da fome... e pela sequência de tentativas
orquestradas de desmonte da democracia brasileira, algumas derrotadas, outras bem-sucedidas.
Mas, poderemos nos lembrar de 2021 e do tempo da pandemia também por ações de
solidariedade, protestos, ações de resistência, experiências virtuais de grupos
de estudo e seminários.
Imbuídos desse espírito de pensar para organizar a crítica e o combate, inúmeros encontros foram realizados para refletir marcos importantes da história recente brasileira. O centenário de Paulo Freire foi uma das efemérides mais amplamente debatidas. E os debates sobre os 90 anos que faria Augusto Boal foram fóruns que promoveram o encontro de gerações de artistas, militantes, pesquisadores, movimentos e coletivos. Relacionamos neste texto alguns desses momentos marcantes, com o intuito de contribuir para uma visão plural dessa história que segue se construindo, viva, intrigante, polêmica.
Conhecido como um dos homens de teatro mais importantes da América Latina pelo trabalho desenvolvido como diretor do Teatro de Arena e como criador do Teatro do Oprimido, a historiografia sobre Augusto Boal tem avançado amplamente nas décadas recentes, contemplando temas como: os anos de formação de Augusto Boal e a importância de sua passagem pelos Estados Unidos, cuja principal obra é a dissertação “Teatro do Oprimido: uma construção periférica-épica” (2015) de Geo Britto, um dos curingas do Centro do Teatro do Oprimido; a dimensão de Boal dramaturgo e a amplitude de sua obra, cujo marco de virada na historiografia é o livro “A hora do teatro épico no Brasil”, de Iná Camargo Costa, publicado em 1996 e, posteriormente, em 2016, pela editora Expressão Popular; as relações do Teatro de Arena com os movimentos de cultura popular dos anos 1960; a relação entre a Pedagogia do Oprimido e o Teatro do Oprimido, ; o papel de Boal e companheiros como Vianinha e Guarnieri, no debate político e cultural, como agitadores e propagandistas.
Augusto Boal foi um homem do fazer coletivo, um homem de movimentos, de grupos, de partido. Sua ampla atuação não deve desconsiderar esse registro fundamental: vivendo sobretudo em contexto de resistência contra derrotas políticas, como os golpes na América Latina, Boal procurou sempre articular dialeticamente as esferas da cultura, da política e da educação.
Dessa forma, por exemplo, aprendeu a questão do racismo como um dado constituinte da exploração de classe quando a esquerda partidária não conferia relevância estrutural ao tema. Certamente a proximidade com Abdias do Nascimento e o Teatro Experimental do Negro colaboraram para essa argúcia do olhar.
A 9ª edição das Jornadas Internacionais de Teatro do Oprimido e Universidade, em 2021, promoveu amplo debate sobre os legados de Paulo Freire e Augusto Boal, com o tema “Esperançar, recriar e (RE)existir: pedagogias do sul na (re) construção das práticas de liberdade”, mobilizando pesquisadores e curingas de diversas universidade brasileiras e de diversos coletivos. Além disso, um grupo de professores ligados às jornadas e ao grupo de estudos em Teatro do Oprimido (GESTO) deu a partida, neste ano, à criação de um Observatório de Teatro do Oprimido nas universidades, para saber em que universidades, em quais áreas, quem e como trabalham com o Teatro do Oprimido, em todas as regiões do país.
A Rede de Escolas de Teatro e Vídeo Político Popular Nuestra América promoveu emblemático debate reunindo numa mesa as contribuições de Carlos Brandão (Unicamp), a teatróloga peruana Alicia Saco – que trabalhou com Augusto Boal na importante experiência do projeto Alfabetização Integral (Alfin) – e a militante Lizandra Guedes, do MST do Maranhão, que abordou a experiência da recente Jornada de Alfabetização que trabalhou com a metodologia freiriana dos círculos de cultura.
Em 2021 também foi comemorada as duas décadas de existência da Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré, resultante de parceria entre Augusto Boal e o Centro do Teatro do Oprimido com o MST. Por meio de textos, um vídeo e uma edição do programa Cantoria de Varanda a data foi comemorada.
Vale destacar a importância que recentes grupos de pesquisa criados por uma nova geração de pesquisadores, artistas e professores tem cumprido no âmbito da pesquisa da história do teatro político, proporcionando para estudantes, professores, coletivos e movimentos novas perspectivas de abordagem sobre temas e experiências que, por décadas, foram registrados por meio de estigmas e estereótipos pejorativos, ou eram ignorados dentro de espaços de formação estética e teatral.
É o caso do grupo Núcleo de Estudos em Teatro Político (Netep) e do grupo de pesquisa História, Política e Cena da UFSJ, que em 2021 realizaram seminário para discutir a história do teatro engajado e abordaram as relações de causalidade entre o teatro de agitação e propaganda (agitprop), o teatro épico dialético e as formas do Teatro do Oprimido.
Em outra frente, o grupo de estudos em Teatro Político (Getepol) da Universidade de São Paulo promoveu o encontro de fôlego “Atos em construção: encontros em comemoração aos 90 anos de Augusto Boal” com inúmeras mesas avaliando diversas dimensões da atuação de Augusto Boal.
No âmbito da pesquisa cabe destacar a chegada, em 2021, da tese de doutorado de Cláudia Pegini, pela Universidade Estadual de Maringá: “A urgência de 1968 nos estilhaços estéticos da I Feira Paulista de Opinião: espaço de criação coletiva e de desobediência estética e civil”, que traça relevante análise estética de conjunto da Feira Paulista de Opinião, destacando um feito organizado por Augusto Boal que marcou o ano de 1968 como um forte gesto de desobediência civil e agitação e propaganda do movimento artístico contra a ditadura, a repressão e a censura. O material se beneficiou da emblemática publicação sobre a 1ª Feira Paulista de Opinião (2015) resultante do trabalho do grupo de pesquisa Laboratório de Investigação Teatro e Sociedade, coordenado por Sérgio de Carvalho (USP).
O Instituto Augusto Boal, sob o comando de Cecília Thumin Boal, segue incansável instigando a inconformidade com o fascismo, a resistência e o debate. Um exemplo foi o curso de extensão Teatro e Política, Brasil e Argentina organizado em parceria com o laboratório Drama em Cena (UFRJ), o grupo de pesquisa Terra em Cena (UnB) e com a revista Teatro Situado.
Augusto Boal não venceu todas as batalhas que lutou, pelo contrário, mais resistiu ao arbítrio e a força que logrou vitórias. Todavia, se destacou pela resiliência, pela maneira como liderou gerações de artistas militantes em tempos históricos complexos, pela perspicácia como soube evitar a consagração pela via da Indústria Cultural.
No início do neoliberalismo tentou fazer política por meio do teatro legislativo, de modo coletivo e evitando o personalismo característico do marketing político. Buscou parcerias horizontais com movimentos urbanos e do campo, não como público para suas apresentações mas como parceiros estratégicos, com quem se aprende e ensina, se traçam planos de transformação da realidade.
Em tempos de ascensão do fascismo, da hegemonia da cultura totalitária de mercado, o trabalho que Boal desenvolveu por décadas, em coletivos, movimentos, por meio da sistematização de métodos e formas organizadas na proposta do Teatro do Oprimido, por meio de sua expressiva dramaturgia épica e dialética, segue nos convidando a aprender com ele.
Para saber mais:
Debate “Cultura Popular: diálogos entre Freire e Boal” da Rede Nuestra América, disponível no link:
Curso de extensão Teatro e Política, Brasil e Argentina, disponível no canal do youtube do Terra em Cena: http://www.artes.uff.br/dissertacoes/2015/2015-geo-brito.pdf
Vídeo de homenagem do MST aos 90 anos de Augusto Boal: https://mail.google.com/mail/u/0/#search/20+anos+da+brigada+/KtbxLzGWwnmgmGGjgwsvVwMNcKqDkbXnhL?projector=1
Episódio do programa Cantoria de Varanda em homenagem aos 20 anos da Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré
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