Intervenção cênica a partir de MUTIRÃO
EM NOVO SOL (peça de Nelson Xavier, Augusto Boal, Hamilton
Trevisan, Modesto Carone, Benedito M . Araújo) - Brigada Semeadores e TERRAemCENA
Distrito Federal – 2011/2012
Personagens:
Representante do
Governo
Juiz
Porfírio
Roque
Baiano
Lavrador@s
Honório
Cenários:
Tribunal
Campo (Assembléia)
Foto de César Ramos (Contag)
http://www.flickr.com/search/?q=C%C3%A9sar%20Ramos%20Contag
CANÇÃO DO ARRANCA CAPIM COLONIÃO
Arranca, arranca, arranca...
Arranca o capim
Arranca o capim
Arranca o capim
Colonião
Foto de César Ramos (Contag)
Basta de sim
Chegou enfim
A hora do não
Chegou a hora
De gente ser gente
Da fome acabar
Que a terra não mente
Responde à semente
Se a gente plantar
Tornando bem forte a união
Chegou a hora
Da casa do pobre
Ser pouca mas pobre
De ter a palavra
O homem que lavra
Do amor sendo nosso
Ser nossa também a canção
Chegou a hora
Da gente ser livre
Sou eu quem labuto
É meu o produto
Sou eu quem opino
É meu o destino
É nosso bem nosso esse chão
Arranca o capim
Arranca o capim
...
Basta de sim
Chegou enfim
A hora do não
Chegou a hora
De gente ser gente
Da fome acabar
Que a terra não mente
Responde à semente
Se a gente plantar
Tornando bem forte a união
1) INÍCIO DO JULGAMENTO
(Tribunal)
JUIZ – Silêncio, silêncio. Ordem nesse tribunal.
REP. GOV – O Governo da Província, conhecedor das graves ocorrências
verificadas nesta comarca, denuncia, neste juízo, a ameaça que tais
perturbações representam para as instituições democráticas do nosso regime e
faz saber que não se omitirá ao dever imperativo de reprimir a violência com a
violência, sempre em nome da legalidade, e das tradições liberais da nação.
Para garantir a inviolabilidade da lei e o imediato restabelecimento da ordem,
o Governo outorga a este tribunal poderes especiais para julgar e punir de
forma rigorosa e sumária os responsáveis pela perturbação do nosso bem-estar social.
JUIZ – Aos 16 dias do mês de março do ano da graça de 1959, nesta
comarca de Santa Cruz do Novo Sol, o poder judiciário, cumprindo as atribuições
que lhe são delegadas neste juízo, instaura, em caráter de emergência, o
presente processo, visando apurar sumariamente as responsabilidades pelo saque
no armazém e pelos acontecimentos ocorridos na fazenda Cova das Antas, de
propriedade do Senhor Porfírio Matias, provocados, segundo denúncia do Governo
da Província, pelo indivíduo de nome Roque Santelmo Filho. Tudo começa com o
saque do Armazém.
Arquivo MST
Foto de Eduardo Machado
2) ASSEMBLÉIA – ARMAZÉM
(Retro)
Foto de Eduardo Machado
BAIANO – Companheiros e companheiras, não dá mais! Tamo com tanta fome
que o bucho vai lá na costela, sendo que a
nossa comida tá la apodrecendo no armazém do Coronel. Não dá mais não!
LAVRADOR@ 1 – Você tá doido, Baiano! Dá outra vez que você foi ao
armazém do Coronel pedi nossa comida você apanhou do jagunço, Baiano.
Arquivo MST
LAVRADOR@ 2 - Temo que brigá sim, tô com Baiano. E além da nossa comida
estragando no armazém, o coronel já mandou solta os boi, que já tão comendo
toda nossa horta. Dá tristeza de vê.
HONÓRIO – Calma, com calma se resolve tudo. Contra a força não há
resistência, “seu” Baiano. Vamos esperar o Senhor Juiz, que é homem estudado,
que é doutor, é quem entende das leis. Melhor a gente ir com calma. Se não, a
gente pode até apanhar, podem até matar nós.
BAIANO – Calma não! Nós temos que ir lá pegar nossa comida. O coronel
já falou que vai mandar chumbo na gente! Ele já tá fazendo isso, já tá pondo os
jagunços em cima de nós. Eu sou prova disso, minha cara tá aqui marcada da
coronhada que eu levei. Não dá mais não, nós tem que ir lá buscar nossa comida!
LAVRADOR@ 1 – Homem, tamo aqui tudo reunido, os compadre, as comadre...
Eu não vou lá botá minha cara a tapa só por causa de uns corajozinhos que nem
você, não. Vamo lá de novo só pra apanhá! (falando
com o público, com a plenária) Que vocês acham, compadres/comadres? Que que
a gente faz? Vocês acha que a gente vai lá ou não vai?
BAIANO – Nós temos que ir sim, que é melhor morrer lutando do que
morrer de fome! Igual tem gente nossa morrendo a mais de vinte anos. Vamo
continuar morrendo de fome, minha gente?!
LAVRADOR@ 1 – Vamo acredita na justiça. Vamo apelá pra nossa fé. Pra
que ir lá correr risco. Eu não quero morrer, eu não quero ser chamado de
vagabundo, sou um homem direito. Deixa de bestagem, Vamo apelá pra religião.
Vamo apelá pra Justiça.
LAVRADOR@ 3 – Há vinte anos trabalho no cabo da enxada e não tenho
vantagem pra contar. A vida inteira curvado em cima da terra vendo as espigas.
A espiga não é minha. Eu fiz essa terra produzir, mas a terra não é minha. Do
chão, peguei o barro e catei palha, fiz casa pequena de sapé. A casa ficou pro
seu Coronel. De meu só tenho a fome e a dor nas costas.
Foto de César Ramos (Contag)
LAVRADOR@ 2 - Aqui não adianta ser bom, minha gente. Pra ser bom é
preciso ter dinheiro. É preciso sustentar a polícia. Quem é que paga a polícia?
Seu Coronel papa-terra. Então, a polícia é boa para ele. Se tiver que dar uns
tiros, no seu Coronel não vai dar, porque ninguém quer perder o ordenado. Quem
é que paga o Juiz? O Coronel. A justiça é boa pra ele. Pra nós, a única coisa
que seu Coronel pagou foi a construção da cadeia. E por isso que não tem que
ficá esperando conversa macia de juiz nenhum, não!
ROQUE - Olhe, minha gente, nós não vamos esperar muito mais, não. Vamos
falar pela última vez. Desde que a gente nasce vai se acostumando a ser
covarde. Meu pai me mandava: “na frente do seu Coronel, tira sempre o chapéu”.
Eu tirava o chapéu mesmo quando não tinha nada na cabeça. Enquanto meu velho
falava baixinho e murcho, eu ficava olhando o chão, o pé do homem, a espora:
“sim, seu Coronel, vosmicê é que manda, vosmicê é quem sabe, vosmicê é
Coronel”. [Agora não está no tempo de “vosmicê”]. Agora o Coronel olhou para
mim eu olho para ele também. Patrão vai mandando a gente embora e nós vamos
recuando? Tudo de crista baixa? Não. Vamos, gente! [Tá errado, não é assim que
se faz. A gente sempre passou a vida recuando.] E o homem veio atrás de nós
comprando terras. Ninguém sabe de quem comprou porque isso tudo era mato sem
dono. Veio pondo no papel que a terra era dele, e agora está escrito. Mas quem
escreveu foi ele. E nós viemos preparando o terreno e dando invernada para ele
plantar colonião. Recuamos tanto que estamos na beira do rio. Tudo que foi
plantado aqui, fomos nós que plantamos. Tudo que foi colhido aqui, fomos nós
que colhemos. Até o capim pra dá pros bois fomos nós que plantamos e colhemos.
Meu aviso é o seguinte: quem quiser continuar covarde vai ter que nadar para o
outro lado do rio. Porque daqui ninguém vai sair. Vou falar com o Juiz. E se
ele não tiver resposta, nós vamos ter. Vamos buscar o que é nosso no armazém!

Arquivo MST
Os ânimos ficam mais acalorados, Alguns/algumas campones@s defendem buscar a comida no armazém imediatamente, outr@s defendem esperar mais um pouco pela resposta do Juiz. As
falas finais e a encenação indicam que @s campones@s seguem para o armazém.
CANÇÃO DA
JUSTIÇA QUE TARDA MAS NÃO VEM
A justiça
tarda, tarda mas não falha
Mas, se a
fome espera, espera nunca falha
A justiça
tarda, tarda porque é cega
Anda devagar,
senão escorrega
A justiça
tarda porque não tem pressa
Mas quem
tiver pressa é quem se atrapalha
A justiça
tarda para o João Ninguém
Se a lei é
safada, tarda mas não vem
3) JULGAMENTO
(Tribunal)
JUIZ - Para encontrar decisão justa e serena, fundada no livre
convencimento da justiça, este juiz dará ampla liberdade ao acusado para que
advogue sua defesa. Adverte-o, porém, de que tudo que alegar poderá reverter em
seu prejuízo. Para historiar os fatos que constituem o objeto desta demanda,
tem a palavra o Senhor Porfírio Matias, proprietário das terras ameaçadas.
ATRIZ QUE INTERPRETA O CORONEL PORFÍRIO (distanciamento): Esse personagem que estou representando, hoje ele
não se veste mais assim. Essa roupa, barrigão, bota, esporas... Hoje eles estão
nos poderes, nos ministérios, no congresso. Estão representando as
Transnacionais, o Agronegócio.

CORONEL PORFÍRIO – Senhor Representante do Governo, Digníssimo Senhor
Juiz, meus senhores. O mundo vai acabar. Em Novo Sol a lei foi esquecida,
ninguém mais tem segurança, toda a virtude findou. A terra está esperando
colonião para o meu gado pastar. Está esperando o corpo de quem desobedecer. No
armazém só entra defunto. Essa é terra de gado, não é para dar meação. Não é
para vocês fazerem filho, não é pra vagabundo no fim de safra me dar colheita
minguada. É gado. Gado de quatro patas, que de duas só não me interessa – não
se pode vender. Mil cabeças soltas numa terra limpa, coberta de colonião, me
rendem mais que dez mil esqueletos como você, caboclo sujo. Querem terra?
Atravessem o rio, do outro lado tem muita terra. Se não tiver, vão mais longe.
Quanto mais longe melhor. Vocês não servem pra nada, só pra chorar de fome.
Quem chora não pode enriquecer o Brasil. Eu não. Aqui no Brasil se come carne
que eu produzo. As carnes que vão pro exterior, saem das minhas terras. Eu
enriqueço a minha terra. Sou patriota, graças a deus. Frigorífico me pede carne
eu dou carne. Esse gado sabe pra onde vai? Pra Europa. Na França se come carne
que o Coronel Porfírio deu ao Brasil. Isso é dinheiro, isso é progresso. Gente
como vocês não faz isso. Gente como vocês tem que ir morrer bem longe que é pra
não atrapalhar o progresso.

Arquivo MST
JUIZ – Que entre a testemunha do senhor Roque Santelmo.
LAVRADORA – Eu e minha família também trabalhamo e moramo nas terras do
Seu Coronel. Um dia o coronel mandou as família tudo embora de suas terras. Mas
nós recusamo obedecer. Combinamo lá em casa de ficá e passar fome voluntária,
esperando a colheita tardia. E nós esperamo. E nós passamo fome. Mas minha
menina precisava crescer. No fundo do quintal nós tinha um mamoeiro. Pra ela nós dava mamão fervido com água e
sal. O diabo do coronel descobriu, mandou cortar o mamoeiro, pra mode a gente
procurar comida longe da fazenda. Mas nós tinha combinado ficá, tinha combinado
esperar a colheita tardia. Nós ficamo, nós passamo fome. E quando chegou o
primeiro dia da colheita, minha filha morreu.
LAVRADOR@ 5 (do lugar de onde
assiste ao julgamento, tomando a palavra antes que o juiz interrompa) – Eu
também quero dar meu depoimento. Primeiro veio o Honório com aquela conversa de
esperar a justiça. Ele disse “calma gente, vamos agir conforme a lei, que a
justiça é boa pros ricos e pros pobres também”, dizia ele. Nós fomos atrás do juiz. Ele mandou nós
esperar e disse que só quem entendia de lei era ele mesmo... Nós esperamos. E
mataram o Honório.
LAVRADOR@ 6 (do lugar de onde
assiste ao julgamento) – É... teve também o Padre nos pedindo pra ter calma,
quando nós não tinha nem o que comê. Nessa hora, reza não mata fome, não... O
Padre reza pra gente, mas também reza pro Seu Coronel.
Arquivo MST
LAVRADOR@ 7 (do lugar de onde
assiste ao julgamento) – Veio então um jornalista, cabra bom, que pensa
como a gente. Ajudou nós a criar a Associação. A gente queria assiná a ata com
sangue, já que a maioria aqui não sabe
lê nem escrevê. Mas o jornalista explicô que com sangue não vale. Então
escrevemos o estatuto da Associação e cada um assinou como sabia, pro pavor dos
coronéis, que não queriam deixá nós se organizar.
LAVRADOR@ 8 (no tablado, do lugar
de onde assiste ao julgamento) – Então chegou um candidato, dizendo estar
do nosso lado, querendo voto em troca. Pedimo arma pra ele, ele desconversou. Pedimo
pra assiná nossa ata, ele foi embora pela porta dos fundos!
JUIZ – Ordem no tribunal! Aqui só pode falar quem for chamado a depor. (pequena pausa) Com a palavra, o réu,
Roque Santelmo Filho.
ROQUE – Mas mesmo a gente mais organizando, a gente foi ficando cada
vez mais cansado da brutalidade do Coronel. Então, fomos falar com cada
família, se queriam obedecer o coronel e ir-se embora ou ficar na terra e aguentar
o repuxo. E qual não foi meu desalento, senhor Juiz, quando vi que a disposição
de todos era muito frouxa, e o medo tinha se alastrado, e estava quase do
tamanho da fome que é o sentimento maior que o homem tem. Mas nós não desistimo
de se organizá, e o medo de não ter o que comer no outro dia foi maior que o
medo das balas do coronel, foi aí que tomamos a decisão de ficar e lutar.
Arquivo MST
JUIZ – Este tribunal considera as provas de culpabilidade do réu como
decisivas e finais. Que todos se levantem para ouvir a sentença. O réu, Roque
Santelmo Filho, é condenado a pena de prisão por tempo indeterminado, até que,
em processo ordinário, seja apurada sua inteira responsabilidade. Entretanto,
os poderes especiais deste tribunal oferecem ao réu o direito de reconquistar
sua liberdade. Para isso, Roque Santelmo Filho, como líder dos revoltosos, terá
de convencer os lavradores a suspenderem a arranca do capim e abandonarem
imediatamente as terras da fazenda Cova das Antas. O réu prefere a prisão ou a
liberdade?
ROQUE – A liberdade, mas não aceito barganha. Eu já fui condenado, mas
não perdemos a luta. Os lavradores sabem que a terra é deles e de mais ninguém.
CORO - Não perdemos a luta. A terra é nossa e de mais ninguém.
ROQUE - Eu sei o que é a cadeia, sei quanta pancada vou levar, sei
quanta fome vou passar, sei quanta sede vou sentir. Eu sei de tudo e os
lavradores também sabem que estão juntos e que juntos ninguém pode com eles.
CORO – Estamos juntos, e juntos ninguém pode com a gente!
ROQUE - Vocês sabem que não podem destruí-los. Porque são eles os que
trabalham e, se eles não existissem, vocês tinham que trabalhar, tinham que
pegar no cabo do guatambu e o juiz tem mãos finas, o delegado e o coronel têm
mãos por demais finas. Vocês sabem que sem nós vocês não existiam. A lei
condenou e a lei é certa e justa, mas é certa e justa para quem a fez. Nós
ainda não fizemos a nossa lei. E quando fizermos a nossa lei também será certa
e também será justa. Mas as duas não são iguais. A de vocês é a lei de quem
explora, (EM CORO) a nossa, é a lei de quem trabalha.
ROQUE - A de vocês me condena, a nossa me há de libertar. A nossa lei
há de libertar todos os trabalhadores do mundo. Senhor Juiz, senhor
representante, (EM CORO) nós não paramos nunca. (Os soldados prendem Roque enquanto os lavradores assistem ao
julgamento. O arranca capim continua e sua canção também).
REP. GOV – Este tribunal adverte que a sentença agora proferida não põe
fim à série de medidas que o Governo da província tomará para pôr termo à
agitação. As forças militares se aproximam e serão mobilizadas caso a arranca
do capim não for suspensa. Quanto às terras de propriedade de Porfírio Matias,
os lavradores terão que abandoná-las. E para isso o governo tomará as medidas
que julgar necessárias...
CORO (tod@s recitam a letra de "Assim já ninguém chora mais", canção de Zé Pinto):
Fotos de César Ramos (Contag)
Sabemos que o capitalista
diz não ser preciso
ter Reforma Agrária
Seu projeto traz miséria
Milhões de sem terra
jogados na estrada
com medo de ir pra cidade
enfrentar favela
fome e desemprego
Saída nessa situação
é segurar as mãos
de outros companheiros.
Foto de César Ramos (Contag)
E assim já ninguém
chora mais
ninguém tira o pão
de ninguém
chão onde pisava o boi
é feijão e arroz,
capim já não convém.
Compadre junte ao Movimento
Convide a comadre
e a criançada
Porque a terra só pertence
a quem traz nas mãos
os calos da enxada
Se somos contra o latifúndio
da Mãe Natureza
Somos aliados
E viva a vitória no chão
Sem a concentração
dos latifundiários.
Seguimos ocupando terra
derrubando cercas
conquistando o chão
Que chore o latifundiário
pra sorrir os filhos
de quem colhe o pão
E a luta por Reforma Agrária
a gente até pára
se tiver, enfim
coragem a burguesia agrária
de ensinar seus filhos a comer capim.
Foto de César Ramos (Contag)
2 comentários:
O blog está maravilhoso!!! :-)
Parabéns pelo trabalho querid@s.
Postar um comentário