INTEGRANTES

O Coletivo Terra em Cena é uma articulação de coletivos de teatro e audiovisual que atuam em comunidades da reforma agrária e quilombolas e em meio urbano. É composto por professores universitários da UnB e da UFPI, e da rede pública do DF, por estudantes das Licenciaturas em Educação do Campo da UnB e da UFPI/Campus de Bom Jesus e por militantes de movimentos sociais do campo e da cidade. O Terra em Cena se configura como programa de extensão da UnB, com projetos de extensão articulados na UnB e na UFPI, e como grupo de pesquisa cadastrado no diretório de grupos do Cnpq. Um dos projetos é a Escola de Teatro Político e Vídeo Popular do DF (ETPVP-DF) que integra a Rede de Escolas de Teatro e Vídeo Político e Popular Nuestra America.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Protocolo sobre “A aurora” – mais recente peça da companhia Cia Burlesca

 Aurora de mil de colores
Anúncio de revolução
Dos que socializam os meios de produção
E resistem aos dissabores
Desta Latina América fragmentada por ditadores
Lutam Claras, Paulos e Anitas
Pela missão infinita
 Da leitura da palavra e do mundo
Semeiam em chão fecundo
A insígnia que na bandeira agita
(Décima da Aurora latino-americana)

O mais recente trabalho da Cia Burlesca, chamado “A aurora”, encerrou no dia 06 de outubro de 2024 seu primeiro conjunto de apresentações por espaços culturais de cunho popular do Distrito Federal e escolas públicas que ofertam Educação de Jovens e Adultos (EJA).

O trabalho parte do livro “A revolução de Anita” lançado pela editora Expressão Popular que relata a experiência da campanha de alfabetização levada a cabo pelo governo revolucionário de Cuba entre os anos de 1959 e 1961. O método chamado “Sim, eu posso!” foi constituído por brigadas de jovens alfabetizadores que estiveram em todos os rincões do país alfabetizando crianças, jovens e adultos. Com esta campanha conseguiram o feito de erradicar o analfabetismo no país em apenas dois anos.

A peça que é o primeiro trabalho solo da atriz Julie Wetzel, que foi dirigida por suas companheiras de companhia Lyvian Sena e Patrícia Barros, aborda o núcleo duro da experiência cubana: o direito à educação como cerne para emancipação e soberania popular. De maneira épica e dialética constroem o argumento não pela sobreposição linear dos fatos, e sim pelo circularidade da relação entre passado e presente que mobilizam a possibilidade de construção de futuro como matéria factível de ação.

A primeira intervenção da atriz provoca a plateia a projetar, pensar o futuro, a sonhar o seu local no mundo não na lógica do capital, da rentabilidade, mas pela ordem do desejo, do que mobiliza e dá sentido à existência. Ao que pude reparar à minha volta a pergunta simples: “Qual profissão vocês gostariam de exercer, sem considerar os desafios, em um plano ideal, o que gostariam de fazer?” nos provocou a refletir e confrontar a nossa expectativa e realidade. A partir dessa mobilização a peça se desenrola.

Podemos interpretar essa como uma pergunta geradora? Acredito que sim, pois a peça gira em torno de outras perguntas, algumas explicitas na dramaturgia e outras implícitas no argumento. A minha preferida é: por que Cuba erradicou o analfabetismo e nós, brasileiros, ainda em 2024 contamos com nove milhões de analfabetos? Cito aqui a comparação que Rafael Villas Bôas teceu para termos um parâmetro: Estamos falando de três vezes a população do Uruguai. (Ver https://www.brasildefatodf.com.br/2024/09/19/a-aurora-novo-espetaculo-da-cia-burlesca-aborda-em-chave-epica-o-tema-da-educacao-de-ontem-e-hoje)

A peça responde trazendo a experiência coletiva do Movimento Popular de Cultura (MCP) realizada em Pernambuco durante os anos de 1950 e 1960 da qual Paulo Freire é uma das maiores expoentes. Experiência interrompida pela golpe militar de 1964 que rompe com o processo crescente de aliança de classes e transferência dos meios de produção de linguagens, seja ela a linguagem verbal, teatral ou mesmo do audiovisual. O que está colocado e fica explicito no argumento da peça é que a existe uma interdição arbitrária e violenta da comunicação. A comunicação é o eixo de disputa, tanto para processo de emancipação por meio da socialização dos meios de produção, como para processo de interdição de discursos para manutenção de status quo.

“A aurora” nos leva a repensar o sentido de revolução e contrarrevolução a partir tensão entre projetos de socialização e privatização dos meios de comunicação. Meios de comunicação entendidos não de maneira reduzida como coube a semântica mais ordinária, mas no entendimento mais amplo: aulas, teatros, Artes visuais e de audiovisual e tantas outras formas de expressão são, nesse sentido, meios de comunicação.

Sendo assim, somos capazes de construir em conjunto com o argumento da peça que articula experiências de dois países, Cuba e Brasil, e que compõe um painel simbólico com músicas, poemas, figurinos e cenografias latino-americanos que essa é uma peça internacionalista que identifica um problema estrutural do sistema: o analfabetismo como alicerce das desigualdades e como barreira para formação de massa crítica.

A emergência do debate trazido pela obra se traduz no outro acontecimento paralelo à apresentação da peça. Nós, brasilienses, diferente dos moradores demais munícipios brasileiros, acompanhávamos como expectadores o crescente número de prefeitos e vereadores de extrema direita sendo eleitos neste domingo. A maior cidade da América Latina, São Paulo, levou para o segundo turno o atual prefeito com declarada plataforma ligada ao projeto da extrema direita e o projeto civilizatório defendido por Guilherme Boulos, tendo como terceiro candidato mais votado Pablo Marçal, que rompeu, ao longo da campanha, até mesmo com os pactos democráticos mais essenciais. O que a conjuntura nos aponta é para emergência da disputa das ideias, para necessidade de construir estratégias que dialoguem e desmonte a ordem radicalizada do capital em crise que vivemos na atualidade.

Nesse sentido, trabalhos como “A aurora” são não somente um deleite mas uma urgência. Que esta temporada que se encerra de apresentações seja apenas a primeira de tantas outras, que “A aurora” circule pelos rincões do brasil e do nosso território latino-americano à luz das brigadas de outrora, acendendo centelhas de luta pelo direito fundamental de ler, escrever, interpretar e transformar a realidade.

Simone Rosa





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